Retrato de um Privilégio
Eu tenho um problema com textos. Primeiro que os episódios, as situações e os pensamentos para mim chegam como crônicas de introspecção. Depois, enquanto não escrevo e ponho pra fora, o tema não me sai da cabeça. Muitas vezes chego a levantar à noite e fazer apenas um esboço dos pensamentos como forma de aliviar essa pressão, acredita? Bem não conto mais para vocês não enviarem aos meus filhos sugerindo algum analista… hahahahaha
Waterloo Port
Bem, para quem conhece vinho, já percebeu a razão deste meu texto. A foto acima bem podia representar o termo “Privilégio”. Trata-se de um Porto Novidade de 1815. Os “Novidade” eram os “Vintage” antes que os vintage aparecessem alguns poucos anos depois. E este em especial é da safra de 1815 que ficou famosa em função da batalha de Waterloo, no mesmo ano, da qual Napoleão saiu derrotado.
Eu fico imaginando quanta história passou por fora dessa garrafa, que impávida, observou calmamente, evoluindo e transformando seus taninos, seus antocianos, consumindo lentamente sua acidez para sobreviver, sabendo que o destino a havia produzido para que o Didú experimentasse essa experiência… Como sou politeísta, imagino Dioniso lá em cima acotovelando algum outro Deus e dando risada dizendo: “Não disse? não disse que iria ser o máximo reservar essa garrafa para o Didú?! O cara sabe dar valor pô. Ele está reverenciando tudo que esperamos dos humanos. Vejam que legal. Eu não estava errado! Chupa!!” hahahahahahaaaaa deve ter sido bem engraçado. Grazie Dio!!
Sem falar de Waterloo, imaginem duas guerras mundiais, pandemias diversas, mudanças geo-políticas, grandes pintores, cantores, cientistas, cômicos, quantos talento, nasceu, mostrou ao que veio, morreu e o Porto lá dentro só observando e esperando… o Getúlio se mata, o Jânio renuncia, os militares tomam o poder, os militares perdem o poder, volta a democracia e tal e o Porto lá, calmo esperando por mim.
Gosto de imaginar o terreno de onde saíram as uvas, imaginar as vinhas que não mais existem, as pessoas que colheram essas uvas e não mais existem, as pessoas que o engarrafaram, que colocaram o rótulo, quantos não manusearam uma garrafa que estava destinada a mim, que nada fiz para te-la…
Mágico imaginar o percurso dessa garrafa. Onde ela estava em cada um dos fatos importantes da história? Por onde andou? Quantas pessoas a tomaram nas mãos, graças a Deus não a derrubaram…, não a abriram… Onde ela estava quando nasci? Como chegou até o Brasil? Como foi parar na adega desse mais que generoso Amigo que me escolheu para compartilhar esse momento em que a garrafa foi aberta devidamente com a tenaz e finalmente o vinho deu sua própria vida para que eu o conhecesse de verdade?
Meu Deus quanto respeito por isso. Que prazer enorme provar esse vinho. E como estava tão inteiro, tão vivo, com frescor, que aromas espetaculares de petit-fours, de amêndoas, de tâmaras, que se confirmavam na boca ampla, longa, com acidez incrível. Como é possível isso? Duzentos e sete anos!!!??!!!
Bem, esse Amigo pede anonimato, afinal imaginem quantas pessoas não viram essa garrafa em sua adega. Porém não poderia dormir sem colocar este texto pra fora. Saúde!