O Falso e o Verdadeiro
Sempre tive aversão pelos produtos dietéticos e adoçantes artificiais. Um gosto difícil de definir, um residual químico no céu da boca que demora para sair. Acho um horror.
Me lembro de uma apresentação do Marco Daniele nos tempos de Laboratório Paladar (como é que foram parar de usar esse nome heim?…) em que ele convidado a apresentar seus vinhos, trouxe dois copinhos descartáveis para cada ouvinte e disse:
“No copinho da esquerda há um iogurte que eu mesmo preparei ontem, com morangos orgânicos, açúcar mascavo e iogurte natural. Deixei na geladeria do meu quarto do hotel e aqui está ele. O copinho da direita é um iogurte de morango (SIC), encontrado no supermercado.
Ele então pediu que provássemos primeiro o copinho da esquerda e em seguida o da direita. Foi um impacto enorme a falsidade do segundo copinho. Era o Falso e o Verdadeiro lado a lado. Então disse aos ouvintes. O vinho que faço é o copinho da esquerda e agora vamos prová-lo. Foi um show. Um grande sucesso.
Agora vejo matéria publicada no Caderno Paladar, redigida pelo André Logaldi, que merece reflexão e espero tenha grande repercussão. Ela trata de um Coisas que não existiam no tempo de Pasteur… A indústria Química no Vinho. Veja abaixo o texto completo.
Idealizado por um cozinheiro artesão, Jérome Douzelet e por Gilles-Éric Séralini, professor e pesquisador especialista em pesticidas e OGM (organismos geneticamente modificados), esse trabalho se constitui num marco importante, de grande importância para a saúde pública mundial. Gilles, desde 2012 vem se dedicando a estudos sobre efeitos tóxicos de um dos mais conhecidos pesticidas da Bayer-Monsanto, o “Roundup” (princípio ativo é o glifosato), o que lhe rendeu até hoje cinco processos por difamação movidos por lobistas e pessoas ligadas à indústria de agroquímicos, dos quais venceu todos.
Enfim, um esforço consciente que se prestará a fornecer sólidos elementos de compreensão para todos os que se preocupam com o que ingerem, sobretudo resíduos químicos dos mais de 250 pesticidas e metais pesados fartamente utilizados na indústria de alimentos, aqui o vinho incluso (as videiras estão entre as principais plantas que se submetem à agentes químicos, chamados com eufemismo pelos lobistas, de produtos fitossanitários). Os países que mais usam esses pesticidas (80% deles, fungicidas) são Estados Unidos, Índia e França.
O PROJETO
Estabelecer dados sensoriais concretos, obtidos através de degustações às cegas e comparativas de vinhos “convencionais” e “biológicos” (bio), feitas por 71 profissionais competentes tais como sommeliers, enólogos, produtores e grandes chefes de cozinha (diz-se que uma pessoa normal pode detectar 4 mil odores; cozinheiros e enólogos até dez mil).
Em abril de 2017 foram realizados 119 testes cegos, que comprovaram a preferência de 77% dos envolvidos pelos vinhos “bio” (pode-se tratar tanto de orgânicos como biodinâmicos com certificação). As degustações, sempre às cegas, se davam em três etapas distintas: em primeiro lugar se comparavam dois vinhos de mesma região, uva, terroir, safra, sendo um convencional e um bio. Pedia-se que se escolhesse qual o mais agradável e por que. Ao todo eram 16 pares.
Numa segunda fase, a mais surreal, se degustavam taças de água mineral com a presença de pesticidas, nas concentrações exatas nas quais eram detectados laboratorialmente nos vinhos da primeira etapa.
Os agroquímicos se apresentam com uma substância “declarada” (o agente principal, dentre vários outros possíveis, dos quais não se exige legalmente suas menções) e foram estes, os declarados pela indústria, que foram diluídos na água nas proporções exatas em que foram verificados nos laboratórios de apoio. Assim, nessa segunda fase foram “degustados” onze pesticidas diferentes, cada qual correspondendo a uma destas substâncias ativas.
Todos os vinhos convencionais, exceto dois, continham resíduos de 1 a 6 pesticidas diferentes, enquanto todos os 16 vinhos bio não continham nenhum resíduo, salvo um, que apresentava traços (valores ínfimos não quantificáveis) de um fungicida conhecido como Folpel. Os pesticidas mais presentes em quantidade absoluta foram o Folpel, a Fenhexamida e o Pirimetanil.
Por razões óbvias as degustações levavam em conta a análise de aromas e das sensações de boca, sendo os líquidos descartados e não engolidos.
O DIABO VESTE PRADA: A MÍMESE
Foi aqui que a análise se mostrou mais frutífera e educativa, pois se pôde notar que alguns destes compostos mimetizam aromas primários ou secundários obtidos pelas próprias uvas viníferas! Todavia, tal como ocorre nos aromas artificiais, a expressão aromática evocada beirava o caricatural. Assim, enquanto sentimos aroma de “baunilha” em um iogurte industrializado (vanilina), esse mesmo odor se torna insignificantemente banal diante da complexidade de uma nota de baunilha extraída da planta Vanillia planifolia, que contém aromas secundários que remetem a algo muito mais “elaborado”.
Desse modo, terminamos por poder encontrar (lamentavelmente) nos pesticidas: notas de frutas vermelhas (morangos), pêssegos, cítricos, pimentão, pinho, terroso, chocolate, caramelo, baunilha, mentol, calcário, bombom inglês… Todos descritores habituais de vinhos!
Dois aromas me soaram particularmente alarmantes: a Fenhexamida pode mimetizar aromas de sotolon, que é a molécula responsável por notas diferenciadas identitárias de grandes vinhos tais como Sauternes, Vin Jaune ou Jerez. E os tióis, moléculas que dão notas típicas para a uva Sauvignon Blanc, como suas nuances de maracujá e grapefruit, também podem ser mascarados por aromas semelhantes vindos de pesticidas e não das frutas (caso do Folpel e do Boscalide).
Como diferenciá-los? Não é tarefa fácil, mas os pesticidas tendem a deixar uma impressão de queimação na boca que permanece por algum tempo após o descarte ou após ter sido engolido. Outros “sintomas”: ressecamento da boca, picotamento da língua, amargor.
Por sorte, os pesticidas também podem deixar traços aromáticos extremamente desagradáveis, que nos afastaria deles, tais como: poeira, água sanitária, madeira podre, cloro, plástico velho, cartolina, mofo, pneu queimado e notas medicamentosas.
A terceira e última etapa da degustação reunia os mesmos pares de vinhos analisados na primeira fase, sendo que a pergunta a ser respondida era: foi notado em algum, nenhum ou em ambos a presença de alguns aromas dos pesticidas avaliados na segunda fase?
Uma das mais célebres participantes do projeto, Anne-Claude Léflaive, proprietária de um terroir privilegiado em Puligny-Montrachet (Borgonha), disse que os aromas de pesticidas são tão grosseiros e caricaturais que a levaram a nomear estes vinhos contaminados como “putassier”. Que em francês significa “o homem que se apraz em visitar prostíbulos”.
Para concluir, muito mais poderia ser dito, porém que fique a lição de que podemos nutrir esperanças de um mundo onde há pessoas que lutam para que todos possamos adquirir conhecimentos que serão, talvez nossa única, porém mais apaixonada defesa diante da ameaça da tecnologia mal utilizada, que por submeter-se a objetivos espúrios fundados no interesse econômico, se esquece dos valores humanos.
Santé!
André Logaldi, médico, membro da diretoria de degustação da ABS-SP, redator e revisor de textos sobre vinhos.